O João nasceu com flores no cabelo. Ao princípio achavam que eram só margaridas e malmequeres, mas, conforme foi crescendo, descobriram que também tinha campânulas. E mesmo isso era alvo de discussão, na rua do João havia dois grupos: os que diziam que margaridas e malmequeres eram a mesma flor, e os que diziam que não.
Mas quando o João nasceu vinha com flores no cabelo. Umas flores pequeninas, mas bonitas e perfeitas. Na sala de parto o médico e a enfermeira nem queriam acreditar! No meio da surpresa e do susto a mãe do João estava preocupada: “O que é que se passa???”, perguntava angustiada.
O médico posou o João nos braços da mãe e disse: “Nem sei o que lhe dizer. Mas tem flores no cabelo.”. “É lindo!”, suspirou a mãe, meio aliviada, meio surpreendida. O pai do João deu um passo a atrás e gritou: “O que raio é isso???”
A mãe já tinha contado esta história ao João muitas vezes. E como depois o pai se zangou. E que não acreditou que o filho era dele. Que não podia ser. Que não era normal. E como numa sexta feira, depois de uma discussão mais, enquanto o João e mãe choravam em partilha, como tantas vezes faziam, o pai saiu para nunca mais voltar. Dizia-se, no Café do Bento, que ele vivia na Póvoa e que tinha outra família.
E assim tinha sido o princípio, como sempre fora, uma vida que misturava magia com dor e tristeza. “Como todas as vidas querido”, explicava a mãe enquanto cheirava o cabelo do João.
Não era fácil ser diferente, e não era fácil ser inexplicável. Durante algum tempo a mãe quis perceber o que se passava. Levou-o a vários médicos e fizeram-se muitas análises. Mas o tempo, o dinheiro e a paciência chegaram ao limite, e como não se encontravam respostas, ela decidiu que isso não importava, e que o João era o João.
Mas o que os olhos da mãe viam com amor, os colegas de escola, os vizinhos e tantas pessoas viam com estranheza. Porque as pessoas costumam ter medo do que não entendem.
No sétimo ano o João gostou da Ana. Já tinha gostado de outras, mas a Ana era diferente. Ela sorria para o João, e no intervalo tinha-lhe dado umas bolachas de chocolate muito saborosas. “Porque tens flores no cabelo?”, perguntou-lhe uma vez. “Não sei.”, respondeu o João envergonhado e encolhido. “Eu acho que é porque vens trazer cor, e cheiros bons ao que te rodeia”, disse a Ana sorrindo enquanto lhe dava um beijo na bochecha esquerda. O João lembrava-se bem porque tinha ficado uma semana sem lavar a bochecha. E porque depois disso foi quando decidiu que ia passar a ver a sua singularidade como um presente bonito e único.
E, realmente, as flores do seu cabelo eram únicas. Acordavam com o nascer do sol, e adormeciam com o pôr do sol. Quando o João estava contente iluminam e brilhavam fortes. E o cheiro preenchia todos os recantos e as pessoas sentiam-se como se estivessem num jardim. E quando estava triste murchavam e o seu cabelo ficava um jardim abandonado e ressequido.
Só a Dona Clotilde da mercearia é que sofria um bocado. Ela gostava do João e o João dela. Mas tinha alergia às flores e espirrava sempre muito com o João. “Não te preocupes filho, os espirros fazem bem para desentupir os canos, e para limpar o pó”, afirmava sempre numa gargalhada.
Mas nem toda a gente gostava do João, e muita gente tinha medo do menino de flores no cabelo. Havia até gente que mudava de passeio quando o via a passar, e gente que sussurrava preocupações e até que lhe gritava insultos.
O João não ligava. Ele gostava das flores no cabelo e era feliz assim.
Quando o João fez 14 anos foi no final do inverno com menos chuva que havia memória. Ele tinha nascido no dia 21 de Junho e abria sempre as portas para o verão. Nesse ano o ambiente estava terrível na vila. Tudo o que tinham plantado estava morto. E muitos dos animais de criação tinham morrido. Sobravam algumas vacas e as cabras do Senhor Teotónio.
Para além disso o Inverno tinha sido particularmente difícil para o João. Porque quando as coisas tinham começado a ficar más tinha começado um rumor que dizia que a seca era culpa do João e das suas flores. Que ele era uma aberração e que era por ele que tudo agora morria.
Ao princípio ele não acreditou, nem quis saber. “Eles não sabem nada”, disse a mãe. E o João estava de acordo. Mas o que ao princípio era uma teoria e um rumor velado ia-se tornando cada vez mais algo dito em voz alta. Primeiro comentado, mas em breve já se tornava grito e raiva no olhar.
A mãe ficou particularmente preocupada quando um dia o João apareceu com um golpe na cabeça de uma pedra que lhe tinham atirado. As flores do seu cabelo murchas e sujas de sangue. E o João com lágrimas e mágoa.
Nesse mês de Agosto a temperatura não baixava dos 20 graus de noite e de dia chegava aos 40. Já não havia água no riacho, e muitas das torneiras já tinham secado. Algumas das pessoas já se tinham ido embora em busca de melhor sorte.
E as que ficaram cada vez mais convencidas da culpa do João. Não porque fizesse sentido, mas porque todos precisam de encontrar sentido, e as respostas fáceis são sempre as mais cómodas, e a culpa é sempre dos outros.
Nesse dia a mãe tinha sentido um golpe no estômago quando o João disse que ia andar de bicicleta. Mas a mãe não lhe queria dizer que não. Porque ele precisava de se sentir normal. E ela tinha prometido a si mesmo que não ia ser escrava do medo.
E o João foi na sua bicicleta. Saiu como sempre voltando em direcção a igreja da vila. Subiu a sua rua e depois uma recta longa. Estavam a sair do Café do Bento os três primos. Porque eram primos, e porque toda a gente os chamava assim. Normalmente bebiam de mais, mas neste dia particularmente quente tinham bebido de mais demais.
Quando viram o João um deles disse: “Vejam quem vem ali: a nossa desgraça! Se ele morresse todos os problemas ficariam resolvidos.”, gritou o Pelé que era o mais novo dos três. “Íamos voltar a ter água, e o que comer.” E os outros concordaram.
Ninguém sabe explicar como aconteceu, ou como tudo se precipitou. Mas agarraram o João, e tanto o sacudiram, e tanto o puxaram e tanto lhe bateram que acabaram por conseguir o que queriam e o João morreu.
Nesse dia, estavam algumas pessoas na rua, e com o barulho e o tumulto muita gente apareceu, entretanto. Mas ninguém tinha ajudado o João, e ninguém ajudou. E agora, com ele ali deitado nas pedras da estrada, era claro e transparente que o João não tinha culpa de nada, e que a sua morte não salvaria ninguém.
A mãe do João apareceu meia hora depois, a correr, a Dona Clotilde tinha ido a correr avisar. “Mataram o meu menino!” gritava enquanto corria para o agarrar nos seus braços. Sentou-se no chão e abraçou o João. E chorou, e chorou, e chorou. E as suas lágrimas, ao chorar, caiam no cabelo do João. E eram tantas as lágrimas, e tanta a dor, que dessa água nasceu, no sítio onde o João morreu, um jardim, cheio de margaridas, malqueres e algumas campânulas.
E ainda hoje, para honrar o João, no dia 21 de Junho, todos põe flores no cabelo e sorriem e cantam, enquanto choram lágrimas de arrependimento pelo que podia ter sido, mas não foi.
Gostei muito de reler este teu conto. Muito bem escrito. Trata-se de um texto simples, mas com um estilo que nos nos leva a querer lê-lo até ao fim, curiosos em saber como a vida do João se irá desenrolar . E assim vamos acompanhando o seu crescimento e ficando a saber quais os reflexos que a sua condição física ia provocando nos que com ele se cruzavam. Os que o acolheram e amaram foram afinal só três. Curiosamente três mulheres. Melhor, uma menina e duas mulheres.Só anos depois da sua morte a “aldeia” o aceitou e lhe atribuiu o seu valor. Este conto tem muito mais do que parece. Era muito bom para uma sessão de leitura. Ou para tema de discussão de variados temas.